sábado, 16 de outubro de 2010

Tempos difíceis


Tomei a liberdade de republicar na íntegra o texto de Don Diego, o melhor que li até agora sobre o segundo turno das eleições.

Dilma, os gays e sua vitória de Pirro

Dilma Rousseff pode ter colocado a pá de cal definitiva em sua candidatura à presidência. Ao comprometer-se a assinar uma carta contra medidas como o aborto e o casamento gay, espera conquistar os votos de milhares de evangélicos e católicos pelo país, mas ignora que pode perder milhões de outros votos, daquelas mulheres e famílias que são favoráveis ao aborto, dos milhares de homens gays e mulheres lésbicas (e de suas famílias), assumidos ou não, que (a candidata parece ignorar) também votam (o voto ainda é secreto) e, principalmente, daqueles que não concordam com as posições extremistas e/ou com as intromissões das igrejas em assuntos de Estado. Sim, somos milhões e todos votamos.

Dilma justificou sua posição dizendo, por exemplo, que “O Estado será laico”. Como acreditar minimamente na candidata, se ela se dobra à vontade dos setores religiosos da sociedade mesmo antes de eleita, ignorando os notáveis avanços mundiais nos mesmos assuntos nos quais ela agora prega posições conservadoras, reforçando a tese de que o Brasil se encontra 50 anos atrasado em relação aos Estados Unidos no que se refere à direitos humanos? Tal comparação foi feita na época da eleição de Obama, ao se ponderar a (im)possibilidade de um presidente negro ser eleito no Brasil.

Se de fato Dilma pretendesse um Estado laico, não se submeteria à situação na qual se colocou no encontro da última quarta-feira com os líderes religiosos.

A candidata disse também: “Não posso dar direito a uns e tirar de outros. A parte relativa a condenar o preconceito contra o homossexual nós todos temos que endossar. Agora, a parte relativa a criminalizar as igrejas é um absurdo”

O que ela parece não enxergar é que a visão passada pelos pastores e padres ao atacarem gays e lésbicas a partir do que consideram uma interpretação certa da Bíblia ecoa fora das Igrejas, mais do que tudo. Nem é preciso recorrer a exemplos distantes: basta olhar atualmente as centenas de outdoors espalhados pela cidade pelo pastor Silas Malafaia, obviamente se dirigindo a gays. Dilma ignora óbvios ululantes como esse agora? Esse é o verdadeiro absurdo.

Saindo das igrejas com mensagens de desprezo e ódio à gays e lésbicas, famílias podem oprimir filhos homossexuais acreditando estarem cumprindo a vontade de Deus e podem expulsá-los de casa, crimes violentos de ódio podem se alastrar, como se os gays fossem culpados dos flagelos da humanidade, o bullying nas escolas pode aumentar, já que crianças e adolescentes tendem a repetir padrões de comportamento e professores e diretores de instituições, que deveriam formar e informar, podem fazer muitas vezes vista grossa por deixarem seus posicionamentos pessoais prevalecerem.

Sobre a frase absurda da candidata de que não pode “dar direito a uns e tirar do outros”, o que nós pedimos é simplesmente o direito de não sermos agredidos verbal e moralmente, de não sermos humilhados e vistos como a escória da civilização humana ou representantes da Besta porque determinada religião interpreta assim. Direitos como esse são básicos; e não algo que possa ser usado como moeda de troca por votos, como parece crer Dilma.

Se por um acaso sua frase procedesse, onde está sua promessa então de revogar a lei de intolerância religiosa, para que eu e outros que discordamos frontalmente das práticas conservadoras de igrejas atuais possamos nos expressar livre e enfaticamente (como fazem os pastores e padres hoje em relação aos gays) contra o que consideramos absurdos e abusos medievais? Não é meu direito protestar e dizer o que penso, então? Ou é direito de credo deles fazer o que acham certo e eu sou obrigado a respeitar por causa da Lei Caó? A recíproca não é verdadeira? Eu e outros não poderíamos ter “nossos direitos tirados” para ser “dado a outros” (padres e pastores).

Dilma Rousseff também ignora a figura do casamento civil. Embora existam igrejas evangélicas como a Cristã Contemporânea, na Lapa, no Rio de Janeiro, que aceita gays e realiza casamentos entre pessoas do mesmo sexo, a imensa maioria dos homossexuais busca basicamente as seguranças jurídicas e de direitos que o casamento civil oferece, não apenas as limitadas opções da união civil. A candidata ignora solenemente tal opção.

Faz exatos dois meses que o casamento gay foi aprovado na Argentina. Que eu saiba, o país não sofreu nenhuma praga bíblica por causa disso, não foi invadido por gafanhotos nem pela peste, nem foi punido “pela ira dos céus” como se fosse a versão atual de Sodoma e Gomorra. Apenas mais pessoas puderam casar com os cônjuges que amam, de sua escolha, e puderam ter, afinal, vislumbres da felicidade que lhes foi negada tanto tempo.

Fico muito triste e sinto imensa vergonha como cidadão brasileiro ao ter que escolher entre dois candidatos que favorecem setores religiosos em troca de votos para vencer uma corrida eleitoral, às custas da dor que milhares de pessoas que sofrem, muitas vezes caladas e sozinhas, por questões que não deveriam entrar na seara política pra começo de conversa.

É humilhante como cidadão gay brasileiro ser tratado como se eu não existisse e/ou meu voto e dos meus iguais não fosse nada importante e relevante.

Penso sinceramente em abandonar meu país, em busca de um local onde possa exercer , pelo menos, o ato de afeto mais simples e singelo que se pode pensar, o de andar de mãos dadas, sem me preocupar se eu vou sofrer agressões morais (e físicas) nas ruas, shoppings, parques e restaurantes provocadas por pessoas que freqüentam igrejas ou cultos que tem respaldo para propagar suas crenças excludentes de ninguém menos que (o) a presidente da República.

Dilma Rousseff, acredito que, caso você vença, sua vitória será, indubitavelmente, uma vitória de Pirro. Serra se insistir nesse assunto deve ir pelo mesmo caminho.