Ode à loucura apaixonada
A intelectual americana da cultura pop diz que o cenárioatual é desanimador, a não ser por um único e espetacular fenômeno: a cantora baiana Daniela Mercury
Sempre colocada nas listas dos grandes nomes da intelectualidade contemporânea e das maiores vocações para provocar encrencas, a crítica americana Camille Paglia, 61, durante anos teve como ícone máximo a cantora Madonna, de quem exaltou a ousadia e a criatividade em dezenas de artigos. Aí, desencantou-se – hoje a considera "patética". O posto de musa inspiradora, porém, não ficou vago: Camille elegeu para ocupá-lo a cantora baiana Daniela Mercury, que conheceu através de DVDs que a atingiram "como um raio". Autora de cinco livros, entre eles Personas Sexuais, uma obra popularizada pelas conexões entre arte clássica e cultura pop, Camille tirou alguns dias de folga na Universidade das Artes, na Filadélfia, onde dá aula de ciências humanas e mídia, para passar o Carnaval em Salvador e, enfim, conhecer Daniela. Antes de cair na folia pagã, falou a VEJA.
Quando a senhora esteve na Bahia, no ano passado, ganhou um pacote de DVDs de Daniela Mercury e, desde então, tem escrito entusiasmados artigos sobre ela. O que a impressionou tanto?
A sensação que tive quando vi os DVDs foi de ter sido atingida por um raio. Comecei a pesquisar freneticamente sobre ela, inclusive em vídeos no YouTube. Vi que, no começo, quando apareceu, se assemelhava a uma corsa. Hoje, é uma tigresa. Ao vê-la cantando, eu me dei conta de como andei entediada com a música americana na última década. Foi justamente a época em que Madonna perdeu a pegada. Já escrevi sobre isso, mas faço questão de repetir: fiquei chocada com aquela loucura apaixonada acontecendo ao ar livre no Brasil, enquanto nós, fãs da música americana, ficávamos presos como ovelhas anestesiadas no curral comercial de shows de estádio, caros e cheios. Sem falar nas nossas canções, que são enlatadas e só se seguram por truques de computador. A Daniela surge como uma grande explosão. Ela é a Madonna brasileira. Faz música pop, mas possui outra dimensão incrível que Madonna não tem: um grande conhecimento sobre folclore, sobre os grupos étnicos brasileiros e sobre a história da Bahia. É bem verdade que a cultura dos imigrantes italianos, da qual Madonna surgiu, se desintegrou com o passar do tempo. Eu também sou produto dessa cultura e lamento que tenha sobrado tão pouco, fora as citações vulgares em Família Soprano.
Durante décadas, a senhora escreveu artigos elogiando Madonna, a quem considerava "a verdadeira feminista". Depois, mudou de opinião. O que aconteceu?
Ela está patética. O que mais me espanta é esse envolvimento com a cabala. De um lado está a Madonna dos anos 80, um símbolo de rebelião contra a ortodoxia religiosa. Agora temos a Madonna pregando a cabala, catequizando pessoas. Para Madonna, consultar a cabala é como ir ao terapeuta. Não é uma crença religiosa, é um modo de lidar com seus problemas psicológicos. E não é coincidência que a criatividade dela tenha decaído. Além disso, ela está um monstro. São inacreditáveis aqueles braços grotescamente musculosos e mãos que lembram garras. Não me parece uma sexualidade realmente autêntica, é muito conceito, muito planejamento mental. Ela deveria meditar sobre sua grande influência, Marlene Dietrich, com quem viveu algo muito triste. Madonna quis fazer um filme sobre Marlene, que ainda estava viva, reclusa em Paris. Marlene não quis. Não permitiu que ela a interpretasse, por considerá-la muito vulgar. Madonna se casou com um homem dez anos mais novo e começou a lutar para parecer uma menininha. Quanto tempo vai continuar com isso?
A separação dela ajudou ou atrapalhou?
Eu achava Guy Ritchie um cara decente e continuo achando. Depois da separação, todo mundo esperava que ele voltasse a desfilar com loiras pernudas, o tipo de mulher com quem saía antes de se casar. Até agora, não apareceu nenhuma foto de Ritchie com outra mulher. Já Madonna quer dar o troco e mostrar que continua desejada, mas só parece desesperada ao sair com homens como Alex Rodriguez (jogador de beisebol) e agora o modelo brasileiro. Ele é muito bonito, diria magnífico, mas o caso é patético. Acho bom que mulheres mais velhas tenham namorados mais jovens. Mas tem de existir química, um entendimento na relação entre os dois. No caso de Madonna, o rapaz parece um gigolô e faz com que ela fique ridícula.
E Angelina Jolie? Com a mistura de imagem sensual, filhos em série e trabalho voluntário, a senhora acha que ela atingiu o ponto de equilíbrio entre mulher fatal e santa, ou é simplesmente esquisita?
Eu fico triste com o que está acontecendo com Angelina Jolie. Ela é uma atriz maravilhosa. Fiquei muito impressionada com sua atuação em um filme inspirado na história da modelo Gia Carangi. O problema com Angelina é que, ao atingir o ápice do estrelato, as pressões ficaram muito fortes e ela passou a fazer um jogo de esconde-esconde esquisito. Normalmente, eu desaprovo atores que se passam por militantes políticos. Tudo bem aparecer ocasionalmente em um evento beneficente, mas eles não devem partir para cruzadas. Uma exceção é o Bono Vox. Acho interessante ver que, conforme vai envelhecendo, dedica sua energia às questões políticas. Mas Angelina ainda está no topo da sua performance. Ela deveria gastar o tempo estudando arte em vez de ficar tentando provar que é Madre Teresa ou Joana d’Arc. Minha vontade é dizer a ela: "Pare de falar e vá se concentrar em outra coisa".
Quem é, atualmente, a mulher famosa que encarna o poder da feminilidade sem cair nos excessos de futilidade?
Gosto muito de Kate Winslet. Ela estava maravilhosa em Titanic. Passados doze anos e tantas pressões, olho para ela e vejo alguém que formou uma família e ao mesmo tempo é extremamente produtiva como artista. Após Titanic, que foi um tremendo sucesso comercial, ela não começou a agir como as atrizes de Hollywood, que só topam atuar em produções suntuosas. Em vez disso, fez filmes de baixo orçamento, pequenos, obscuros. Ela tem a postura das atrizes inglesas, que é considerar a arte mais importante do que virar celebridade.
Mas Kate Winslet não está no mesmo nível de popularidade que Madonna ou Angelina. Existe alguém com o apelo delas que tenha feito bons trabalhos, sem derrapar no comportamento pessoal?
Infelizmente, estamos em um período de declínio das grandes estrelas. Eu acho que a última estrela de grande dimensão, vinda de Hollywood, foi Sharon Stone, com o estonteante Instinto Selvagem. Eu pensava que Angelina fosse ocupar esse papel. Mas ela não quis, então acabou. Nem me lembro da última vez que fui ao cinema. Em vez disso, estou aqui me deleitando com um DVD de Louise Brooks, num filme de 1929.
Como estudiosa de história antiga, a senhora acha que o presidente Barack Obama poderia ser equiparado a Adriano, que saiu da periferia do Império Romano e o revigorou, ou Constantino, o imperador convertido, que selou o começo do fim?
Não sei. O governo dele começou há muito pouco tempo. Barack Obama pode ser um presidente bem-sucedido, ou pode virar prisioneiro de um Senado à romana. Além disso, muitos imperadores romanos foram vítimas da colaboração entre a aristocracia e os militares. Veremos se Obama vai ter a habilidade de controlar o aparato governamental de maneira a impor sua vontade diante um Congresso muito independente.
O império americano está em declínio?
É difícil responder a essa pergunta, porque não tenho certeza se o chamaria de império. Os romanos impuseram a sua civilização, bem como os ingleses, no auge do império britânico. O que os caracteriza como império é o controle político e comercial de boa parte do mundo. Eu diria que os Estados Unidos, desde a sua ascensão ao topo do mundo após a I Guerra Mundial, exerceram principalmente um imperialismo cultural, através da exportação dos filmes de Hollywood e de marcas como Coca-Cola e McDonald’s. Quanto ao uso do poderio militar americano no exterior, o que ocorreu no Vietnã e no Iraque foi uma tentativa equivocada de fazer o que se achava correto, em resposta ao que pareciam ser grandes ameaças. Em nenhum dos dois casos existia a ideia prévia de que iríamos nos tornar ocupantes permanentes. Ambas as situações também propiciaram um significativo aumento do poder presidencial. O Poder Executivo usa o Exército sem consultar os demais poderes e sem que o Congresso aprove uma declaração oficial de guerra.
É possível o país estar economicamente fraco e militarmente forte?
Sim. Mas a questão não é tão simples. Os americanos que se opuseram à invasão do Iraque ficaram enfurecidos porque bilhões de dólares arrecadados via impostos foram jogados fora. Houve um desperdício obsceno do nosso dinheiro. Ele deveria ter ido para a área social, para o sistema de saúde, para infraestrutura, em nosso próprio país. O governo Bush foi muito esbanjador. Bush gastou em excesso, e a eficiência dos principais organismos governamentais parece ter piorado. Foi inesperado, porque republicanos em geral têm responsabilidade fiscal, enquanto os democratas são os imprudentes, propensos a gastar em excesso na área social. Bush deixou o Partido Republicano em ruínas. Sou uma grande ouvinte de programas de rádio (nos EUA, ultraconservadores) e notei que há anos começaram a criticar o governo Bush.
Onde estão, à esquerda e à direita, as grandes ideias para enfrentar a crise econômica, fora os sucessivos planos de estímulo?
Há um enorme caos acontecendo em Washington, com a aprovação de gastos que não temos dinheiro para bancar. Mas, na minha opinião, está havendo, sim, um embate feroz de ideias. Os republicanos desaprovam o pacote de estímulo de Barack Obama porque acreditam que o governo não deve espalhar tanto dinheiro e que a melhor maneira de acelerar a economia é reduzindo impostos e aumentando o poder de compra dos cidadãos. Os democratas sustentam que devemos auxiliar quem está com problemas agora e que o governo deve exercer controles maiores, de maneira mais parecida com o modelo europeu.
Tantos anos de pós-feminismo e as mulheres parecem continuar a viver em conflito diante de seus diversos papéis. Há solução à vista?
Não. É um dilema terrível quando as mulheres aspiram a ter filhos e carreira. E é um dilema que não afeta os homens. Não por uma questão de discriminação da sociedade, mas simplesmente porque a natureza escolheu deixar o enorme fardo da gravidez para as mulheres. Vemos nos tempos modernos uma evolução da antiga família ampliada, da grande família tribal, em que diferentes gerações viviam juntas, rumo ao modelo em que as pessoas vivem isoladas em famílias nucleares, seja mãe, pai e filho, seja mãe divorciada e filho ou mãe solteira e filho. Isso põe as mulheres sob enorme pressão para fazer coisas que antigamente eram feitas pelas parentes. Antigamente, no interior, quando uma jovem ficava grávida, ela não fazia nada. As mulheres mais velhas a dominavam e ficavam dizendo "Vá descansar, saia da cozinha. O filho que você leva aí dentro é o nosso sangue". Hoje, quanto mais bem-sucedida a mulher, mais distante ela está desse modelo comunal. Ela vive louca atrás de babá, empregada, enfermeira. Consequentemente, sofre um nível de intensidade nervosa e de exaustão sem precedentes na história. Alguém se lembra de ter tido uma avó agitada?
As mulheres perdem com isso?
Claro. A feminilidade americana hoje é estressada, é louca, é "superconceituada". Todas as mulheres querem ser a Carrie de Sex and the City. Não acho nada estranho que tantos rapazes bonitos e inteligentes não queiram se casar ou sejam gays. O máximo que uma mulher jovem e bem colocada na carreira tem a oferecer é uma instigante conversa sobre trabalho ou um empolgante almoço de negócios. É um tédio conversar com elas. Aliás, estou cansada de falar dessas mulheres. Vamos falar mais da Daniela Mercury?
Tá podendo hein, Dani!
3 pitacos:
Imagina quando a Camille descobrir Ivete Sangalo ;)
(o comentário anterior ficou todo truncado na hora que publiquei...)
Ivetão! hehehehe
Postar um comentário